Imagine que, na noite passada, você teve dois sonhos. Em um, Deus aparece e ordena que você tire um ano para viajar pelo mundo. Em outro, Deus lhe diz para dedicar um ano trabalhando num abrigo de leprosos.
Qual desses sonhos você consideraria importante? Agora, suponha que você tenha tido um pesadelo, no qual seu amigo o defende de seus inimigos, e outro sonho onde esse mesmo amigo age pelas suas costas e tenta seduzir sua alma-gêmea. Qual sonho você levaria a sério?
Questões difíceis, mas cientistas sociais agora têm respostas – e, sinceramente, já era tempo. Durante milhares de anos, os sonhadores tiveram como base pouco mais que a hipótese dos dois portões proposta em "A Odisséia". Depois que Penélope sonha com o retorno de seu marido, ela fica cética e diz que apenas alguns sonhos importam.
"Há dois portões", ela explica, "através dos quais essas fantasias etéreas vão adiante; um é de chifre, e o outro de marfim. Aqueles que vêm do portão de marfim são irreais, mas aqueles do portão de chifre significam algo para quem os vê."
Sua hipótese dos dois portões, posteriormente legitimada por Virgilio e Ovídio, era elegante na teoria, mas não muito útil na prática. Como você poderia dizer de qual portão veio seu sonho? O marfim de uma mulher poderia ser o chifre de outra.
A ciência entra em cena Hoje, entretanto, podemos começar a fazer distinções, graças a uma série de estudos com mais de mil pessoas, realizada por dois psicólogos, Carey Morewedge, da Universidade Carnegie Mellon, e Michael Norton, de Harvard.
Os psicólogos começaram perguntando a estudantes de três países – Índia, Coreia do Sul e Estados Unidos – quanto significado ele davam aos sonhos. Relativamente poucos estudantes acreditavam em teorias modernas de que o sonho é simplesmente a resposta do cérebro a impulsos aleatórios, ou que se trata de um mecanismo para organizar e descartar informações. Em vez disso, a maioria nos três países acreditava, juntamente com Freud, que os sonhos revelam importantes emoções inconscientes.
Esses freudianos instintivos também consideravam os sonhos como valiosos presságios, conforme demonstrado num estudo pedindo que eles imaginassem estar prestes a sair numa viagem de avião. Se, na véspera do voo, eles sonhassem com a queda do avião, havia uma maior probabilidade de cancelarem viagem do que se vissem uma notícia sobre um desastre real na mesma rota.
No entanto, quando os pesquisadores pediram que as pessoas interpretassem sonhos, surgiram algumas correlações suspeitosamente convenientes. Quando se pediu que recordassem seus sonhos, eles atribuíram mais significado a um sonho negativo que fosse sobre alguém de quem não gostassem, e deram correspondentemente maior peso a sonhos positivos sobre seus amigos.
Uma indução similar apareceu quando foi pedido que as pessoas imaginassem ter tido diversos sonhos a respeito de um amigo ou uma divindade. As pessoas classificaram um sonho sobre um amigo as protegendo de atacantes como tendo "mais significado" que um sonho sobre seu parceiro romântico sendo beijado por esse mesmo amigo. As pessoas que acreditavam em Deus tinham maior probabilidade de ser influenciadas por aparições divinas.
Fé oculta Entretanto, mesmo os descrentes mostraram uma fraqueza por certos sonhos celestiais, como um no qual Deus ordenava que eles dedicassem um ano para viajar pelo mundo. Agnósticos classificaram esse sonho como tendo muito mais significado que o sonho sobre Deus ordenando o trabalho junto aos leprosos. Incidentalmente, embora o termo ideal para a lepra seja agora hanseníase, a divindade no experimento usava o antigo termo bíblico.
A conveniente indução dos sonhadores é diplomaticamente definida como uma "abordagem motivada à interpretação de sonhos" por Morewedge e Norton na publicação especializada "The Journal of Personality and Social Psychology". Quando questionado se essa "abordagem motivada" também poderia afetar os pesquisadores de sonhos, Morewedge apontou à tendência de Freud de encontrar o que ele estava procurando – sexo – em seu livro "Interpretações de Sonhos".
"O próprio Freud sugeriu que os sonhos sobre voar revelavam pensamentos de desejo sexual", conta Morewedge. "Intrigantemente, no mesmo texto, Freud sugere que sonhos sobre a ausência da habilidade de voar – ou seja, sobre cair – também indicam sucumbir ao desejo sexual. Isso pode ser interpretado como evidência de que, ao interpretar seus sonhos, os cientistas são tão parciais quanto os leigos."
Curinga Ao ver o quão flexível pode ser a interpretação dos sonhos, você entende por que ela sempre foi uma ferramenta tão popular para a tomada de decisões. Basear-se em seus sonhos para direcionamento próprio é como o ritual político de apontar uma "comissão independente" para solucionar uma questão. Você pode escapar a qualquer responsabilidade pessoal de ação enquanto finge se basear num processo imparcial, mesmo que tenha enchido a comissão com seus próprios amigos e ignore qualquer conselho que vá contra seus desejos. Trabalho beneficente, não; caipirinhas, sim.
Mesmo sem acreditar em seus próprios sonhos, a nova pesquisa sugere que você pode aprender algo dos sonhos dos outros. No Livro do Gênesis, quando o faraó fica preocupado com seus sonhos sobre gado emagrecido e espigas de milho secas, não seria ilógico para José concluir que o governante está preocupado com a possibilidade da fome. Ele teria, então, toda a motivação para interpretar o sonho de forma que o faraó criasse um novo programa de estoque de grãos – e, por que não, um novo emprego para José supervisionando isso tudo.
Fundo de verdade Mesmo duvidando que os sonhos contenham percepções ou profecias ocultas, Morewedge e Norton apontam que os sonhos podem ser indicadores do estado emocional das pessoas, conforme mostrado pelas descobertas de outros pesquisadores sobre uma correlação entre estresse e pesadelos.
Os sonhos também podem se tornar profecias auto-realizáveis, simplesmente porque as pessoas os levam tão a sério, dizem Morewedge e Norton. Sonhos sobre infidelidade amorosa podem levar a acusações e hostilidades, que causariam uma infidelidade real.
"Quando amigos e seres amados têm sonhos perturbadores", sugere Morewedge, "alguém pode precisar de mais do que dizer, 'Foi apenas um sonho'. Também pode ser uma boa ideia não contar às pessoas sobre seu comportamento indesejável num sonho, pois elas podem inferir que o sonho revela sua verdadeira opinião a respeito delas."
O último aviso se aplica mesmo quando não-freudianos discutem sonhos. Mesmo se você não atribui grandes significados aos sonhos, mesmo se os considera alucinações aleatórias que não vêm de portões de marfim ou chifre, ou de qualquer outro lugar, você provavelmente ainda deveria prestar atenção quando, digamos, seu par romântico lhe conta um sonho em que você foi pego na cama com outra pessoa.
E, definitivamente, você deveria se preocupar quando seu amor vai adiante e menciona um segundo sonho, envolvendo uma ordem de Deus para viajar pelo mundo por um ano. Se ele for um interpretador de sonhos altamente motivado, você pode ficar sozinho em casa.
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